Gravidez infantil após estupro: o contexto alarmante do Brasil

O Brasil se chocou com o caso da criança de 10 anos que passou por um aborto após ser estuprada pelo tio, no Espírito Santo. A menina era violentada sexualmente desde os seis anos de idade e não relatava o problema por ser ameaçada pelo abusador. O fato também trouxe à tona dados alarmantes: o Brasil tem, em média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14 anos, que engravidaram após terem sido estupradas.

A gravidez é um dos agravos resultantes da violência sexual. Há outros danos que são impostos, de ordem física, psíquica e social. “O abuso sexual interrompe o desenvolvimento infantil, criando para a criança uma condição psíquica que ela não tem condições de responder porque ainda não tem maturidade para isso. Quando ocorre uma gravidez tão precoce, na maioria das vezes ela nem entende o que está acontecendo, o que é uma gravidez, como isso aconteceu, pois não tem ainda consciência de como funciona o seu corpo”, explica a psicóloga Ângela Ruschel, do Serviço de Atenção Integral à Saúde Sexual (SAISS), do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas.

A também psicóloga do SAISS, Jane Heringer, ressalta que o impacto social também não pode ser esquecido, pois a menina que engravida nessa situação e tem um bebê, muitas vezes, não segue na escola, tendo suas perspectivas de futuro limitadas e seus sonhos abandonados.

Importância da conduta adequada dos profissionais
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país. A situação reforça que as condutas adotadas pelos profissionais da saúde não devem ser feitas por preceitos morais ou por suas próprias inquietações. “O manejo do caso não deve ser definido antes de dar espaço para ouvir o que a criança entende estar acontecendo e ajudá-la na condução de alternativas de resolução, não a excluindo do processo, pois o abuso já a colocou neste lugar de submetimento”, afirma Jane.

De acordo com a médica Sandra Scalco, coordenadora da equipe do SAISS, é preciso estar atento a dados técnicos, ao cumprimento da legislação, mas também a singularidade de cada caso, aos danos físicos e emocionais de qualquer conduta que possa ser adotada. “A responsabilidade de uma equipe que avalia uma situação como a descrita, vai além do prescrito, exige uma sensibilidade e um cuidado extremo, embasado por argumentação técnica e realizado de forma interdisciplinar e intersetorial”, afirma.

Outra questão que vem à tona são os possíveis riscos que o procedimento da interrupção da gravidez pode causar num corpo tão jovem, como o caso da menina de 10 anos. Conforme esclarece Sandra, é importante ressaltar que trata-se de um aborto legal (permitido por lei, em nosso país), e que essa situação se impõe, diante de todo o fenômeno de extrema vulnerabilidade, como sendo uma possibilidade de redução de danos. “Não se trata de uma ‘escolha’, mas sim uma alternativa, sempre associada a sofrimento, em menor ou maior grau, especialmente por parte da vítima e responsáveis, para dar conta de evitar danos ainda maiores”, destaca.

Ainda de acordo com a médica, segundo medicina baseada em evidência, o risco de vida materno é bem menor no procedimento de interrupção da gestação (e de preferência, de forma mais precoce possível), se comparado aos riscos inerentes ao processo gestacional até o término, bem como as implicações de parto e puerpério.

Mais do que o físico – a “reviolência”
A situação vivida pela criança do Espírito Santo nos leva também à reflexão sobre a forma como o caso ganhou repercussão em todo o país, e consequentemente, a exposição do problema. Além disso, aconteceram protestos em frente ao hospital onde foi realizado o procedimento. Todos estes elementos também podem ser considerados uma forma de violência contra a menina. Segundo as psicólogas do SAISS, o fenômeno é chamado de “reviolência” e pode ocorrer de diversas formas.

Além do dano do abuso sexual sofrido pela vítima, a negligência no atendimento e o julgamento moral pelo qual a menina passou podem gerar uma sensação de culpa, como se ela tivesse feito algo errado, provocando aquela situação ou fosse responsável pelo ocorrido. “O abuso já é uma marca que a criança levará para toda sua vida e tudo o que puder ser feito para reduzir os danos dessa grave situação, ajuda. O oposto também é verdadeiro. Assim, publicizar e usar a vida de uma criança para dar voz a uma polarização de ideias, crenças e valores também é cruel. Ocorre então uma repetição da violência, pois sua intimidade é de novo violada”, ressalta Ângela.

As psicólogas reafirmam a importância dessa temática, pois a sociedade precisa estar engajada para proteger essas meninas, mas ressalta que há uma linha tênue nesse processo, que pode caracterizar agravos ainda maiores. “Nesse contexto, reiteramos a lembrança do direito constitucional de garantia de sigilo e privacidade e que o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre o direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral. Isso abrange a preservação da imagem, tendo em vista que a criança é pessoa em condição de desenvolvimento”, explica Jane.

A recuperação após o trauma
Do ponto de vista psicológico, as profissionais explicam que a recuperação deste tipo de trauma é singular para cada pessoa. Porém, ressaltam que o início de um processo de cuidado é o acolhimento da situação, ajudando a criança a entender sua condição vulnerável, que ela não deveria estar passando por isso, que não é a culpada pelo que aconteceu, e nem pelas consequências da revelação do abuso. Nesse contexto, é muito importante o apoio das pessoas próximas, com vínculo de afeto, além do acompanhamento terapêutico.

Essa criança precisará assimilar esse drama, esse trauma que foi a vivência de uma violência sexual por um longo período e realizada por alguém que deveria confiar (a violência perpetrada nessa idade, geralmente é crônica). “Esta menina terá que buscar um significado, dar um sentido ao que teve que ser sua história de vida para então buscar possibilidades e caminhos para si. Ela precisará reaprender a confiar, base das relações humanas; diferenciar amor e cuidado de abuso. Um abusador sexual usa a criança como objeto para realização do seu desejo e a submete a ele, num momento do desenvolvimento que ela não é capaz de entender o que está acontecendo. Se nenhum adulto intervém, ela fica desamparada e confusa, porque o violador é uma pessoa de sua referência”, explica Ângela.

A importância da educação sexual
Sandra ressalta a importância deste tema ser trazido à tona, pois não colocar a vítima num lugar de culpa e julgamento – passa inevitavelmente pela educação sexual. De outra forma, quanto mais tivermos dados técnicos e embasados, mais recursos teremos na população em geral, para evitar a violência sexual, ou pelo menos, minimizar seus agravos. “Muitas pessoas, com discernimento e engajadas passam a entender melhor esse processo a partir de informação adequada, e tornam-se aliados prestando apoio de alguma forma, e isso é fundamental para diminuirmos a ocorrência de tais situações”, declara.


Por Mariana Nunes, jornalista e repórter do Bella Mais/CP

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